quinta-feira, 29 de julho de 2010

Atriz

Escolhi me especializar em Transtornos Alimentares e Obesidade, e à toa não foi. Não posso negar que havia lá, na época de minha decisão, uma questão pragmática envolvida, mas, enfim, eu poderia ter escolhido outra coisa.

Na minha adolescência era de comer escondida. Não sei por qual razão, mas achava que nas leis tácitas da minha casa comer demais era o pecado maior, e eu amava comer demais!

O relógio marcava 18:30, eu finalizava o preparo do meu delicioso brigadeiro. Levei-o para o quarto, e, ao som de um reggae, daria a primeira colherada quando escutei o molho de chaves e o assovio característico do meu pai.

-Putz!

Guardei a panela inteira no guarda-roupas, sentei e fingi ler um livro.

-Que cheiro de chocolate no seu quarto!
-Não tô sentindo não.

terça-feira, 27 de julho de 2010

"Pára-raios em dia de sol"

Era sexta, e eu já começava a comemorar meu "um quarto de século". Ele chegou anunciando sua presença com um cheiro que se antecipava, um misto de maconha e dias sem banho. Contou-nos que esteva muitos dias em alto-mar e que seu barco agora estava atracado no Iate Clube, até nos chamou pra dar uma volta. Pediu uma cerveja, tinha sede, foram muitos dias navegando. Comprei uma long neck temendo que ele quisesse sentar à mesa conosco, mas isso não ipediu que ele ajoelhasse do nosso lado , e, em agradecimento me fizesse uma pulseira. Conversou um bom tempo, como se sentasse à mesa. Mostrou a carteira de identidade novinha. Caxias do Sul, 1964, esqueci seu nome. Cantou pedaços de "Parabólica" do Humberto Gessinger, disse que eu parecia alguma atriz antiga que já me esqueci também e confessou que o pior da vida andarilho era ver tanta gente mas não poder, de fato, conversar. Agradeceu a cerveja e disse que tinha que voltar pro seu barco.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"

Mário Quintana

sexta-feira, 23 de julho de 2010

"Honey please don't cry / listen to me (...)"

Conversávamos na padaria e vimos do vidro o escândalo de uma criançinha que mal caiu e já berrava. A mãe fingiu que limpava a calça da neném, deu uns beijinhos e poucos segundos depois a pequena já dava um risinho molhado de corisa. Lembrei-me de uma cicatriz que tenho no joelho esquerdo, um presentinho eterno de uma queda que tive na volta da escola. Não lembro minha idade, e justamente por não lembrar, acho que era bem pequena. Minha mãe andava do meu lado, me levantou sem notar o sangue. Não a culpo, eu nem piei.

Hoje antes de chorar eu interrompo a conversa dizendo que estou com fome, que tenho sono ou que minha vontade de falar acabou, mas é só pra que o choro não venha. O choro não evita a cicatriz, mas pelo menos chama o olhar.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Dreaming of screaming

Íamos nós três. Parecia um restaurante em um terraço de um prédio de São Paulo. Eu nunca estive em um, mas não consigo pensar num outro lugar. Um restaurante italiano, certamente, e as toalhas das mesas quadriculadas em branco e vermelho.

Eu queria espaguete, mas só tinha talharim, então a mais velha me dizia: "Come talharim mesmo, é bom!" e eu aceitei. E eu queria só "ao sugo", mas ela insistiu que eu comesse alguma carne: "Tem que ter alguma carne, oras!", e eu tentava indecisamente optar por alguma coisa que eu não queria, eu não queria carne, mas, por fim, para não desagradá-la, escolhi frango, e ela disse: "Não, escolhe a carne e boi, pode escolher, ela NÃO É de primeira!", e eu me perguntei "Mas eu não deveria escolher justamente porque É de primeira? Devo escolher porque é de segunda, terçeira ou quarta?". Para não me desagradar completamente, mas para não desagradá-la também, eu quis à bolonhesa, tem carne, é de boi, mas não era a de segunda. A senhora tanto insistiu que eu ficasse com a outra que, no final das contas, cedi.

A outra, a mais novinha, só observou. Tenho certeza que ela não abriria mão do molho de tomate, saberia se posicionar muito melhor que eu.

terça-feira, 20 de julho de 2010

"Eu só quero chocolate, chocolate"

Fiquei na dúvida se ao buscar as conversas, e consequentemente as identificações, fiquei mais esperançosa ou não.

Mas afinal, o que se espera quando se busca uma conversa? Tento não ter a inocência de achar que seja uma resposta, por mais que lá no fundo seja exatamente isso, uma resposta, o que mais queira. Ou álibis, não sei também.

- Um café e um pedaço de bolo de chocolate bem grande, por favor, moço. E uma foto da gente depois, só pra registrar esse momento!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Caminhando, e cantando, e não ouvindo a canção...

Acho tudo isso, de ver e escutar as coisas numa clareza imensa, tão ridículo.

E aí me dizem o tempo inteiro da alegria de escolher, da potência de poder optar por este ou aquele caminho. Uma amiga me falou algo de que eu não consigo esquecer "Quando a gente furou o ouvido já era...".

Já era mesmo! Já era a confortável ignorância do não querer saber e do ir vivendo gerundiamente pela vida afora...

Ah, que saudade da vida gerundiante!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sonhos

Poupá-lo, sempre.

Pois quem não conseguia enxergar que, de todos, ele era a figura mais frágil? Quando se via contrariado, em rompantes de ira gritava. Mas era pra se defender, porque durante a noite, seus sonhos eram de abandono. Ai se ele soubesse que nós jamais o abandonaríamos...

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Voa

Ela aí, se queixando de sua velhice, dizendo que prefere a morte do que se ver ruindo com o passar dos dias, dos meses, dos anos.

Eu aqui, querendo tanto ser ela quanto ela querendo ser eu, querendo que os dias, os meses, os anos, passem rápido, voando.